O balanço das águas mareava aquela tripulação a caminho do desconhecido. A higiene e condições de abrigo eram precaríssimas. Os homens sequer tomavam banho ou se alimentavam como deveriam.
A viagem era muito longa, sem previsão de chegada, pois a natureza podia adiar as previsões do capitão.
Tudo andava conforme se esperava, até o momento em que passamos por um local inóspito, onde o clima virou e enfrentamos uma inesquecível tempestade. Os homens apenas rezavam, pois o navio estava à deriva, não havia como controlá-lo naquelas condições, apenas evitavam que ele fosse arrebentado pela ressaca do mar. Naquela noite, muitos pereceram e outros sobreviveram ao que parecia ser “a Ira de Deus”.
Eu agradeço por ter sobrevivido àquilo e, mesmo assim, não tinha ideia do que me esperaria em terra firme. Assim que cheguei, fui comercializado e segui para uma família desconhecida na condição de escravo. Achei que, talvez, pudesse ser um homem livre, mas não esperava ser tratado como um escambo, uma moeda de troca.
A fé no Alto nunca foi esquecida por mim. Trabalhava de sol a sol, seguia as ordens dos senhores e cumpria tudo o que era determinado. O tempo foi passando, fui envelhecendo e não tinha mais forças para trabalhar no pesado, então, comecei a auxiliar os homens doentes, os escravos machucados e todos que precisavam de auxílio, mas os senhores de engenho eram incapazes de chamar um médico.
Fui aprendendo, na prática, como poderia ajudá-los com ervas e plantas para a cicatrização de feridas, para cura de males e chás para recuperação de doenças, males e problemas em geral.
Dediquei muitos anos de minha vida ao auxílio a homens que, como eu, não tinham a liberdade de ir e vir. Depois disso, fui médico noutra vida, estudei, aprendi muita coisa e pude ajudar muitas pessoas, mas o dinheiro falava mais alto e, muitas vezes, não atendi os homens que não podiam pagar. Atendia alguns, mas não a todos que chegavam pedindo e implorando ajuda.
Hoje, trabalho no plano espiritual e auxilio a pessoas que trabalham com cura; muitos me perguntam por que não me mostro como um médico e sim como um simples escravo negro. Digo que as marcas que mais tocam o coração do homem são as que formam cicatrizes na caminhada entre as vidas.
Como médico, aprendi muito e sou grato, mas como negro, posso dizer que carrego as marcas exemplares da minha caminhada, pois o Cristo me ensinou que os dons recebidos de graça devem ser dados também gratuitamente.
Como trabalho para o Cristo, prefiro me mostrar naquela roupagem em que nada cobrava e fazia por amor a todos que me apareciam.
Não deixo de ser médico, mas antes disso, sou apenas um negro que amou a todos os doentes que passaram por mim.
Vô Manuel
Mensagem recebida no dia 12/06/2014 por Filipe Gimenes de Freitas, advogado, escritor, palestrante espiritualista e filho do CENSC