Nas primeiras incorporações senti que ele era um homem de linguajar simples, mas se expressava assertivamente e de forma circular (didática), reexplicando e repetindo suas falas buscando assim, fixar o ensinamento, para no final retomar as primeiras frases do início da prosa. A conversa serpenteia, dá a volta no assunto e no sujeito, conclui muitas vezes utilizando rimas que arrancavam risos dos assistidos. Em outros momentos, relata e compartilha suas próprias experiências de vida.
Certa vez, um companheiro dos trabalhos mediúnicos perguntou seu nome, e ele prontamente respondeu: “Nome de cabra macho é Júlio, Jerônimo, Severino, Januário, isso é nome de homem!” Meses depois corrigiu alguém que o chamava de Vô Júlio, respondeu rindo: “Eu não sou velho. Velho é tio Joaquim, esse povo. Não sou Vô, só me chame de Julião”. Assim tomei consciência do seu nome. Com o passar dos meses e dos anos de trabalho com esse guia, fui percebendo mais camadas em sua maneira de se manifestar.
Baseada em suas nuances, achei que fosse um vaqueiro ou um sertanista, mas, em outros momentos, ele dava indícios de ter sido um cangaceiro. Anos depois de trabalho mediúnico, certo dia perguntei a Vó Maria: - Meu preto velho poderia ter sido um cangaceiro? Ela respondeu negativamente. Mesmo com algumas dúvidas, respeitei sua autoridade e acatei a resposta.
Segui trabalhando com ele. Foram anos de aprendizado ao lado do preto velho chamado Julião, que, durante os atendimentos, compartilhava pequenas “pérolas” de sabedoria. Ele costumava chamar pessoas sem iniciativa, acomodadas ou as que se mediam em situações conflituosas de "cabra sem serventia". Em algumas ocasiões, brincava prometendo uma surra, “coça, ou peia” como corretivo educativo “pra virar gente” e em outras, pedia "me dê uma tirinha de couro", garantindo que removeria “só são dois dedos de tira, de cima a baixo. Tiro sem derramar uma gota de sangue”.
Dentre suas brincadeiras, ele convida as pessoas a deitarem na sua rede falando assim: “- Vamos Seu Wanira dá uma balangadinha?” Outra afirmativa recorrente dele é: - “Sou moço respeitador, para mim todo mundo é “Seu”, seu Anita, seu Dionildo, seu Giuliana”.
Em certos atendimentos ele faz questão de frisar "eu não repito mulher na minha rede. Cada noite é uma. Eu aviso se quiser ir, terá a melhor noite de sua vida, mas é só hoje". Essa frase sempre arranca risos, a alegria quebra paradigma ele aproveita para dar ensinamentos sobre a brevidade da vida, o aqui e agora ou outra cosmopercepção. Ao dizer de suas preferências arremata reflexões e leva o consulente a questionar determinado valores culturais, políticos e morais.
Não sei se eu não estava pronta para acessar essa informação, se ainda não era o momento certo ou se simplesmente não havia necessidade de expor essa revelação. Somente após anos de trabalho, certo dia, Vó Maria, ao vê-lo atuar, afirmou rindo que Vó Julião era um preto velho cruzado.
Observando seu ponto riscado, compreendi o motivo de suas brincadeiras ríspidas, cheias de dribles e negaças, e presença marcante em certas giras de Exu. Certa vez durante os atendimentos, ele declarou ser um cangaceiro. Ri aliviada percebendo que minha intuição estava correta: “ele realmente havia sido um dos membros do cangaço”. Posteriormente, Vó Maria confirmou essa revelação.
Com o tempo, fui colhendo mais informações realizadas durante as giras e atendimentos. Certa vez ele disse: “Tenho um metro e cinquenta e três, mas valho muito mais que muitos homens de um metro e oitenta.” Em seus depoimentos, deixa claro seu desdém pela polícia, a quem chama por alcunhas engraçadas, e faz questão de registrar sua aversão aos políticos, e valorizar os atos de companheirismo e lealdade com o lema: “Companheiro é companheiro, filho da puta e filho da puta.”
Ao ler a biografia do cangaceiro Julião, tudo fez sentido: suas falas, sua resistência e até as rejeições da médium se alinhavam perfeitamente às do guia. Perfil das personalidades, amálgamas espirituais que ampliavam a sintonia e intensificavam as incorporações.
Sempre que pode, ele destaca sua preferência por uma carne de sol assada na brasa, acompanhada de farinha e uma boa aguardente. Para ele, a rapadura é a melhor sobremesa.
Profetiza que: “trabalho em outro lugar, lá bebo uma garrafa de pinga, e não fico bêbado”. Sinaliza, como: “Seu Gilda” não permite que eu beba durante os trabalhos, então, eu me sujeito a essa condição para poder continuar atuando”. Mesmo assim, ele carrega a garrafa inclinada sob o braço e caminha com destreza, sem derramar uma única gota. Com sua sabedoria peculiar, ele usa a aguardante como um elemento simbólico, ritualístico e magístico. Aplica diretamente em passes, limpando as mãos e os pés das pessoas pois considera seu melhor remédio sagrado.
Embora soltando estas ‘chaves interpretativas’ de quem ele é, Julião pouco fala de si mesmo, dizendo apenas o suficiente para ser identificado e mostrando sua linha de trabalho, rústica e direta, fazendo o bem mas, fazendo bem feito, sem angústia ou culpa pelo tempo que transitou por este sertão, antes de ingressar as fileiras dos Pretos-Velhos, do irmão Ferreira e ou dos Exus. Sem negar sua origem, exemplifica mostrando que o mais rústico, o mais brabo sertanejo, no caminho evolutivo encontra o Mestre, que o ilumina na luz da caridade. É como se ele dissesse minha brabeza não durou para sempre. Hoje falo com rusticidade mas caminho buscando a luz.
Por Gilda Portella, multiartista, sacerdotisa de Umbanda e mestranda Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - UFMT