A Cultura do Alto Diamantino - Torixoréu -MT

Notícias 18/01/2025 21:32

 

“A parte que mais me encanta na folia é observar os foliões que tocam flauta de pífano. A flauta conduz o ritmo alegre da celebração, enquanto as batidas do bumbo me transportam para memórias de meu pai”. Ananda Vasconcelos, 33 anos, professora de língua portuguesa, irmã da festeira de 2025, rememora a frase costumeiramente pronunciada pelo pai folião: "Nossa, quando ouço o repique do bumbo, meu coração se enche de felicidade e alegria." Com a voz embargada, Ananda reforça essa conexão ao afirmar: "O meu também, fico muito emocionada." Ela continua compartilhando sua experiência: "Os foliões trazem alegria para as pessoas através do samba e das brincadeiras de roda. Gosto muito quando eles cantam os hinos para os finados, pois é uma maneira bonita de lembrar aqueles que já se foram, uma demonstração de respeito. Acho essa parte muito especial também."

O relato de Ananda Vasconcelos traz profundas emoções, memórias afetivas associadas à Folia de Reis, vividas no Alto Diamantino durante sua infância e adolescência. A expectativa pelo final do ano era marcada pelo aguardado giro (percurso) dos foliões, que iniciava entre os dias 13 e 17 de dezembro. A Folia começava com uma multidão acompanhando a saída, e no dia 24 de dezembro, ao entardecer, os foliões retornavam e eram recepcionados com alegria e devoção, culminando com uma cantoria, louvação à meia-noite na lapinha. Encantamento e magia se mesclavam enfeitando a vida desse pequeno vilarejo.

Essa tradição envolvia grande dedicação, liderada por Maria Alexandrina, irmã de sua mãe Anita Neves, e segundo Ananda também ajudava a montar a lapinha (presépio) utilizando materiais naturais e regionais, como tinta com pigmentação de anil, açafrão, folhas verdes, cola de polvilho, areia e pedras do rio Diamantino. A lapinha tinha o formato de uma gruta, era ornamentada com várias plantas, animais e cenas das lides agrícolas (monjolo, pilão socando arroz); assumindo o protagonismo Ananda afirma consciente de suas raízes: “para manter a cultura e a tradição baiana  falo lapinha.”

   

 

O ritual era concluído com rezas diárias do terço e, no dia 24, a oferta de bolo e café à meia-noite, enquanto os foliões cantavam e dançavam em frente a lapinha, depois ia para a capela. Em seguida, o samba animava a sede da festa até altas horas. A Folia de Reis também está entrelaçada com a memória e a história do pai de Ananda, José Ribeiro, que se tornou folião após ser convidado pelo festeiro Antônio Jesus em um momento de dificuldade para formar o grupo. Apaixonado pela tradicional festança, o seu pai aprendeu a cantar, tocar e participou por muitos anos, trazendo histórias fascinantes sobre o giro que encantavam os filhos.

A narrativa de Ananda ressalta o valor emocional da Folia, que preserva a memória familiar e ancestral, relembrando com saudade a avó Duchinha e outros parentes que perpetuaram a tradição da lapinha. Para ela, a Folia não é apenas uma celebração religiosa e cultural, mas um elo vivo com o passado, carregado de lembranças afetivas e marcantes que continuam emocionando e reforçando a sua identidade baiana.

Compartilho o relato de Ariston Lima 58 anos, caixeiro há quase 25 anos, sobre sua experiência na Folia de Reis. Ele descreve uma das dificuldades enfrentadas pelo grupo de foliões de Alto Diamantino, vila pertencente ao município de Torixoréu. Ariston, atuando como caixeiro, participou da celebração na região do Alcantilado. Durante o trajeto, o caminhão que transportava roupas, colchões e instrumentos musicais sofreu uma pane na embreagem. A peça foi soldada três vezes, mas continuava quebrando sob pressão. Por fim, precisou ser removida e levada para Rondonópolis para ser retificada. No dia seguinte, o caminhão foi reparado. Enquanto isso, os materiais foram transferidos para duas caminhonetes, o que causou atraso na chegada.

Apesar de já ser depois da meia-noite, os foliões mantiveram a animação e a devoção, cumprindo o ritual da Folia de Santos Reis com entusiasmo. Eles tocaram, cantaram e dançaram, demonstrando que, mesmo diante de contratempos, a tradição foi respeitada com dedicação.

Após a apresentação, o grupo tomou banho, fez uma refeição e descansou. No dia seguinte, a celebração foi retomada e seguiu até cerca de 3 horas da tarde. Este relato destaca o espírito de improviso, superação, diversificação e a forte convivência comunitária que caracterizam a Folia de Reis, onde a alegria e a devoção superam qualquer dificuldade ao longo do caminho.

“Seu” Demilson Pereira de Souza, o popular “Dema”, 55 anos de idade é o reizeiro (devoto e membro permanente há 29 anos da folia do Santos Reis), ele toca caixinha, é o bumbeiro (toca a bumba) e dita a sequência e o ritmo das músicas a serem cantadas. O mestre “Seu Dema” da folia, é um dos encarregados de entoar as músicas que embalam a festividade, compartilha com emoção qual é “o Reis” (música do reinado) que mais gosta de cantar: "Eu adorei cantar aquele Reis de finado, achei muito bonito." Em seguida, com a voz firme, mas comovida, recita um trecho da canção: "Pai, Filho, Espírito Santo, as três palavras de Deus, fechar o corpo bem fechado, para cantar para quem morreu." Ele explica: "É um Reis triste, mas eu acho ele muito lindo, adorei."

 

Assisti à performance dessa música na casa da “dona Branca”, em Torixoréu, e senti profundamente o espírito de irmandade que unia vivos e mortos, manifestando respeito e uma integração harmoniosa entre os mundos físico e espiritual, passado, presente e futuro. A melodia, além de invocar a proteção para os foliões com o pedido de fechamento de corpo durante a homenagem ao falecido, traz uma saudação, seguida de um breve comunicado que anuncia o falecimento e orienta a alma em sua jornada. Os instrumentos, com seu ritmo compassado, acompanham simbolicamente essa condução, enquanto a vela acesa ilumina o caminho de luz a ser seguido. O canto, nesse ritual, revive alguém que já não está presente fisicamente, mas cuja memória é perpetuada musicalmente e permanece ativa e potente. A folia, assim, transforma-se em um meio de eternizar a história, a memória de outros devotos e foliões, garantindo que suas presenças permaneçam vivas na tradição e no coração da comunidade.

Durante o giro, ocorre uma suspensão do tempo imposto pelo trabalho capitalista, normativo e disciplinador. Nesse momento, os homens não desempenham profissões laborais remuneradas. Há uma revitalização dos mortos e a expressão criativa da arte humana. O som dos tambores, afoxés, flautas e reco-recos constrói linguagens e vozes que dão vida a discursos, histórias poéticas e dimensões estéticas, éticas e políticas. Esses elementos transformam o cotidiano em um espaço de encantamento, liberdade e beleza.

Grécia Almeida Lima é a responsável pela cozinha, com o apoio de Valdino Almeida e Jeová Júnior como ajudantes. Henrique Gabriel e João Bosco os churrasqueiros ficaram encarregados de assar as carnes. No dia 3, o cardápio do almoço contou com arroz, feijão, farofa, mandioca cozida, salada de repolho com tomate e carne assada. Já à noite, os participantes desfrutaram de carne com mandioca, arroz, feijão, farofa, macarronada e salada. Tudo foi oferecido gratuitamente, bastando comparecer e aproveitar a festividade. O convite se estendeu para toda as famílias da comunidade. No dia 4, o cardápio será praticamente o mesmo, servido à vontade durante todo o dia e noite, sem hora para encerrar. Os ingredientes para as refeições são obtidos tanto por doações quanto por compras pelos festeiros.

 

"Seu Rubens Carolino de Moraes" com 78 anos, menciona com orgulho os nomes de diversos foliões e festeiros que contribuíram para que a comunidade do Alto Diamantino preservasse o sentimento de pertencimento, o senso de coletividade e a prática do bem-viver. A primeira celebração foi realizada em 1971, organizada por Rubens Carolino e seu amigo Antônio de Ambrósio, já falecido. “Seu Rubens” participou como folião entre 1971 e 1982. Ele destaca que os foliões eram em sua maioria parentes, ou pessoas ligadas por laços de afeto e religiosidade, como o sogro “Seu Manoel”, conhecido como Nezinho; Veríssimo, Nucha, “Seu Olímpio”; além dos cunhados João Chaves, Valdir, Valdemar e o primo de sua esposa, João Alves. "Naquele tempo éramos nove foliões; hoje restam apenas três: eu, o primo da minha esposa, João Alves Chaves, e o irmão dela, Valdemar”. Em 2016, a festa foi organizada por “Seu Rubens”, sua esposa Edith Maria Moraes, suas filhas e genros: Neuraides Carolina e Francisco Batista, Neura Lúcia e Marco Antônio de Barros, Neura Rúbia e Humberto Carlos, e Rubneide com Marco Antônio Catulé. A celebração dos Santos Reis foi interrompida durante a pandemia de COVID-19, entre 2020 e 2022, e novamente em 2024 devido ao falecimento do folião José Ribeiro de Paulo.

Segundo Luiz Antonio Simas em um país historicamente marcado por projetos de exclusão, concentração de riquezas e apagamento material e espiritual dos saberes não brancos, além do enfraquecimento da vida comunitária, as festas populares emergem como espaços potentes de reconstrução do ser por meio do sentimento de pertencimento coletivo.

Essas festas – manifestações culturais que não se confundem com o fenômeno da cultura do evento – representam celebrações comunitárias que desafiam o individualismo e a deterioração das relações sociais. São rituais que revigoram os laços comunitários, resistindo à fragmentação social, ao mesmo tempo em que reforçam o senso de pertencimento, criam redes de proteção social e afirmam a beleza da vida nos interstícios do desencanto cotidiano.

 Viva Santos Reis! Viva os foliões!

Por Gilda Portella, multiartista, sacerdotisa de Umbanda e mestranda PPGECCO - UFMT


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